quarta-feira, 24 de junho de 2009

Um critério de cor

Há quem diga que no Brasil não há racismo. Há quem diga que em Salvador não há racismo. Há quem acredite na mula sem cabeça, no curupira e no capitalista do papai noel. Todas essas constatações (ou chorumelas?) servem apenas para introduzir o relato de um fato que me ocorreu na segunda-feira, 22 de junho. Eu recém havia saído do trabalho e esperava o ônibus para ir para casa em um dos pontos do bairro Cidade Jardim - aquele mesmo que fica dentro do Candeal ou que o Candeal fica dentro dele (nunca descobri).
Juntamente comigo, cerca de 15 trabalhadores também aguardavam seus respectivos coletivos para retornarem ao lar depois de mais um dia de batente. Foi quando se aproximou um grupo de policiais militares, certamente convocados para reforçar a segurança da população na chamada "Operação São João", um mecanismo pontual para tentar coibir a violência em meio aos festejos juninos. Pois bem: eles fitaram as pessoas que estavam na parada de ônibus, dentre os quais, esta besta que vos escreve, e decidiram "encarnar" em dois cidadãos específicos (que não esta besta que vos escreve).
Eram dois homens com idade aproximada em 25 anos. Eles trajavam camisas de pano, bermudas, chinelos de dedo e tinham mochilas nas costas. Ah, quase que esqueço, eram negros também. Os PMs, então, revistaram a ambos, somente a eles. As demais pessoas que esperavam seus ônibus ficaram constrangidas com o constragimento daqueles dois rapazes. Ao levar em conta o que ouvi em suas "defesas", eles eram operários de uma das obras milionárias daquela região valorizada da Soterópolis. Logo, veio a suposição: trabalharam feito burros de carga o dia todo, carregaram peso, devem receber um salário de fome e, ainda por cima, são suspeitos de serem criminosos.
Depois de interrogatórios do tipo "cadê seus documentos?", "onde é que você mora" e "o que é que tem no bolso de dentro dessa mochila", os policiais militares deixam os caras em paz. Indignado, resolvo entrar no gamão:
- Senhores: estou aqui também e preciso ser revistado!
Surpresas e tensas, todas as pessoas que estão no ponto de ônibus me olham e, logo em seguida, direcionam seus olhares para os policiais, que também me fitam.
- A gente não quer te revistar. Não é você quem escolhe. Diz um dos PMs. Pegando o gancho dele, um dos colegas completa, insinuando:
- É que ele deve ter alguma coisa para querer ser revistado. Vamos revistá-lo, então.
Respondo, com novas questões: - E por qual razão eu não teria algo para ser revistado? Olhem a minha pasta! É preciso ter a pele escura para ser revistado?
Um dos militares, um soldado barrigudo e de bigode, começa a perder o controle:
- O que você quer dizer com isso? Está nos chamando de racistas?
Todos novamente me olham. Quando os ônibus estacionam no ponto para descarregar ou pegar mais passageiros, as pessoas botam a cabeça para fora da janela, a fim de acompanhar a discussão. Prossigo.
- Eu não afirmei que vocês são racistas. Eu perguntei se é preciso ter a pele escura para ser revistado, porque tem umas 20 pessoas aqui, e somente esses dois rapazes foram considerados suspeitos. E se eu tiver com cocaína aqui na minha pasta? Eu passo despercebido?
- Rapaz, você quer que a gente te leve preso por desacato a autoridade?
- Que desacato? Não estou desacatando ninguém, nem abusando de uma autoridade que eu não tenho. Estou fazendo perguntas a vocês, apenas. Sou jornalista, um ser curioso por natureza. Neste momento, torço para que os PMs estejam desinformados e não me ironizem, dizendo algo do tipo: "grande merda, seu diploma sequer é reconhecido..." Para a minha sorte, eles estão desinformados e devem achar que o tal do Gilmar Mendes foi o descobridor do Brasil.
O chefe dos militares não me dá crédito. Ordena aos colegas que me revistem. São 18h30 nas proximidades da Juracy Magalhães com a avenida ACM (qualquer semelhança é mera coincidência), quando, enfim, consigo ser revistado por dois PMs contrariados, que certamente só não me encheram de sopapos porque sou jornalista e tenho a pele clara.
Quando eles vão embora, os rapazes trabalhadores, suburbanos e negros chegam até mim e me cumprimentam, comentando o absurdo que acabaram de protagonizar, logo aqui, onde cerca de 80% da população é negra.
Chega o meu Estação Mussurunga. Entro no ônibus, procuro um lugar para me sentar e ligo o aparelho de MP4.
A música?
Que País é Esse, do Legião Urbana.

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