quarta-feira, 29 de julho de 2009

Quando a moqueca desanda

Foto: Carla Arena
A Alzira era a melhor cozinheira de Salvador. Extremamente simpática e atenciosa, aquela bisneta de escravos vindos do Senegal chamava a atenção por suas maravilhosas moquecas de camarão – atração principal do badalado restaurante Panela de Barro, situado no bairro do Rio Vermelho.

Trabalhadores de todas as classes sociais, boêmios, artistas e até mesmo políticos frequentavam o Panela de Barro todas as semanas. Cabe destacar que eles não se deslocavam até o Rio Vermelho apenas por causa da bela vista para o mar, tampouco devido ao ambiente simplório e carente de reforma do restaurante: eles só queriam saber da fervilhante, apimentada e suculenta moqueca da Alzira.

Só para se ter ideia, lembro de uma vez, em que eu estava defronte a Igreja do Senhor do Bonfim, na Cidade Baixa, e observei um turista agitado, provavelmente norte-americano, fazendo, num português desajeitado (fruto do desespero), a seguinte pergunta para o fiteiro (vendedor das famosas fitinhas):

- Onde ficar o Panela de Uarro? Ai querer conhecer Alzira. Ai querer comer a moukeka da Alzira!

- No Rio Vermelho, meu patrão. Respondeu o comerciante, já acostumado com questionamentos como este, afinal, Salvador só tinha seis pontos “estereotipadamente” turísticos à época: Farol da Barra, Lagoa do Abaeté, Igreja do Senhor do Bonfim, Pelourinho, Dique do Tororó e, é claro, o Panela de Barro, este último, já sabemos, em razão da fantástica moqueca de camarão de Alzira.

Em uma belo dia, ou melhor, numa bela tarde ensolarada na capital baiana, a “Solvador” descoberta por Caimmy, segundo Tom Zé, resolvi convidar os colegas de trabalho para almoçarmos no Panela de Barro. Éramos aproximadamente 20 pessoas, ao todo, sendo que um de nós aniversariava. Para comemorar, nada melhor do que moqueca de camarão, nada melhor do que a especialidade-mor das mãos abençoadas de Alzira.

E lá fomos nós, certos de que comeríamos como verdadeiros reis naquele fatídico dia. Eu mesmo, que frequentava o Panela de Barro no mínimo três vezes por semana, cansei de me sentir o rei do Rio Vermelho, imperador do mundo, depois de me acabar nos labirintos suculentos da moqueca de camarão da Alzira. Ah... Que delícia! Chego a ficar com água na boca só de lembrar.

Então, logo que chegamos ao restaurante, pedimos uma porção de mesas para que pudéssemos ficar juntos, conversando sobre tudo o que não fosse trabalho, enquanto nossos paladares já se aguçavam por instintivamente anteverem o que estava por vir. Avistei o gerente, que andava de um lado para o outro. O curioso é que ele sempre parecia tão calmo, certamente pelo sucesso do seu Panela de Barro, graças as mãos divinas de Alzira. Mas não naquela tarde. Seus olhos estavam arregalados, suas mãos tremiam e ele bebia, contra a própria vontade, uma caneca de água com açúcar.

Cliente das antigas que eu era, chamei-o para saber o que estava acontecendo.

- Olá! Tudo bem? Onde está dona Alzira? Trouxe um pessoal para conhecer a famosa moqueca que ela faz.

E o gerente, choroso, com a voz embargada:

- Você não sabe o que aconteceu! A Alzira fraturou a mão hoje pela manhã. Ficará 15 dias longe da cozinha! Estou arruinado!

BBBBBBBBBBUUUUUUUUUUUUUUMMMMMMMMMM!!! O mundo desabou sobre todos os clientes do Panela de Barro depois daquele anúncio apavorado do gerente. Senti que o final dos tempos estava próximo. E agora, o que fazer sem a moqueca de Alzira? Os que já sabiam da péssima notícia estavam apreensivos, mas não arredavam o pé do Panela de Barro, na vã expectativa de que a tal da fratura não passasse de uma brincadeira de mal gosto.

Mas não era. O negócio era sério mesmo. Para tentar amenizar a tragédia, o gerente tinha que tomar uma decisão indigesta, logicamente precisa e eficaz: escolher uma substituta para ninguém menos que Alzira – a cozinheira mais afamada de Salvador. Havia duas opções. A primeira alternativa era Gorete, uma espécie de faz-tudo da casa, excelente auxiliar de serviços gerais, mas que, na cozinha de Alzira, não metia a mão. No máximo, fritava algumas batatas para pratos secundários. Não cozinhava mal, mas era tudo o que a nossa deusa das cambucas de barro não era: um ser mortal comum.

A outra alternativa era Jacira, cozinheira experiente, natural substituta de Alzira. Jacira também era muito simpática, o que fazia com que ela também fosse a principal recepcionista do restaurante. Qual foi a decisão do gerente, hein, hein? Pasmem: ele escolheu Gorete, porque, a princípio, não queria perder a simpatia de Jacira na porta do Panela de Barro, depois de já ter ficado sem Alzira.

Todos ficaram apreensivos. Mais de uma hora depois de termos pedido a moqueca, eis a surpresa desagradável: o camarão estava salgado demais, o dendê carregado ao extremo, às borbulhas aferventadas borbulhavam de forma menos reluzente do que o normal, em suma: um grande fracasso! A moqueca do Panela de Barro desandou, pela primeira vez, em 28 anos de história intocável. Motivos: a lesão de Alzira e o erro de decisão do gerente. Para completar, ficamos uma semana no banheiro passando mal do estômago – cada qual a seu turno, é claro.

O técnico do Bahia, Paulo Comelli, tinha três alternativas para suprir a falta do meia Ananias, que até então era o melhor em campo na vitória parcial do “tricolor de aço” contra o Juventude, na noite de quarta-feira, 28 de julho, no estádio de Pituaçu. Uma delas era colocar Dedé na lateral-esquerda e passar Ávine para o meio de campo. As outras duas passavam pelas entradas ou de Nádson ou de Alex Terra, até porque o time caxiense dava espaço demais pelas alas do campo, e parecia estar pedindo para levar uma goleada dos baianos.

Mas Comelli tomou uma decisão errada. Colocou Dedé no meio de campo, numa função que ele exerceu, pela última vez, no início da carreira. O esquema tático do Bahia, até então bem postado e superior ao do adversário, perdeu força ofensiva, passando a atrair o Juventude para o campo de defesa, a partir do segundo tempo. O tricolor venceu a primeira etapa por 2x0, mas logo sucumbiria na metade final da partida, quando os gaúchos empataram, dominaram os donos da casa e, por uma questão de tempo e azar, não saíram de Salvador com três pontos na bagagem. Méritos para o técnico Ivo Wortmann, que fez as mudanças certas, sem medo de ser feliz.

Com o resultado, o Bahia deixou de ficar a 4 pontos do quarto colocado do Campeonato Brasileiro da 2ª Divisão, chegando a sua terceira vitória consecutiva. Se o técnico Paulo Comelli não quiser deixar a nação tricolor com o coração na mão, terá que rever alguns conceitos e fazer as trocas necessárias na hora certa, além de cobrar mais atenção dos seus comandados, que ontem deram mole quando achavam que a cobra já estava morta. Do contrário, o famigerado torcedor do Bahia passará mais um ano no inferno da Série B, distante da grandeza que significa a elite do futebol nacional.

Na noite de ontem, a moqueca do Bahia desandou.

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