quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A Bahia também já me deu régua e compasso



Na sacada dos sobrados/Das cenas do Salvador/Há lembranças de donzelas/Do tempo do Imperador/Tudo, tudo na Bahia/Faz a gente querer bem/A Bahia tem um jeito... Terra/Por mais distante/o errante navegante/Quem jamais te esqueceria? (Terra – Caetano Veloso)

Salvador. Salva'dor. Tão fascinante em seu atraso provinciano. Eu desgosto desta cidade com todos os nervos de meu corpo, mas, ao mesmo tempo, sou apaixonado por ela, como um adolescente ingênuo fascinado pelas curvas de uma mulata estonteante, que ainda não descobriu todas as suas potencialidades.

Era 15 de janeiro de 2004. Eu desembarcava, junto com minha irmã, no aeroporto Luís Eduardo Magalhães – algum tempo depois, só o chamaria de 2 de Julho-, a exemplo dos camaradas que comem acarajé nas noites boêmias do Rio Vermelho. Chovia muito. Meu tio Waldoir nos buscara de carro, um monza azul com detalhes em preto. Era também o dia da Lavagem do Bonfim. As pessoas disputavam todos os cantos das calçadas nas ruas da Cidade Baixa. Nunca vi tanta gente tomando cerveja em um espaço tão curto. Os homens, em sua maioria, estavam sem camisa. As mulheres, seminuas, sambavam de forma desconcertante: eu era apresentado ao famoso Samba de Roda do Recôncavo, diferente de todos os demais sambas que eu já conhecia. O carro praticamente não saía do lugar. O negócio era estacionar mesmo nos Mares e seguir a pé até a Sagrada Colina.
Foto: Fernando Vivas/Agência A Tarde

Tudo era muito novo para um portoalegrense de 17 anos que recém chegava à Bahia de todos os santos, cheiros e crenças. Aquela musicalidade, aquele enrosca-enrosca frenético de corpos, aquela alegria toda com gosto de fuga me remetiam ao “Samba, Suor e Cerveja” de Caetano. A letra da música se mostrava para mim ali de forma explícita e muito bem representada. O banho de folhas que ganhei de uma baiana defronte à famosa igreja parece que me deixou enfeitiçado. Eu recordo que não entendia quase nada do que estava acontecendo, mas estava ali, todo molhado, com cheiro de ervas perfumadas, sob as bençãos do Senhor do Bonfim (ou seria Oxalá?).
Faz cinco anos hoje. E o guri de Alvorada que pedia R$ 0,10 para comprar sacolé (na Bahia eles chamam de “geladinho”) é um quase jornalista. Ah, aquele banho de cheiro... Todas as portas para as minhas realizações pessoais sempre estiveram abertas em Salvador. Curiosamente, minha vida foi mudar para melhor em um lugar distante do meu, mas, que, ao mesmo tempo, também passou a ser meu, quando me abraçou e permitiu que eu ficasse.

Aportei aqui sem nada, salvo a esperança de dias melhores. Era uma chance de contrariar as estatísticas complicadas que batiam à minha porta em Alvorada, uma das cidades mais violentas e com um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano do Rio Grande do Sul. Mas como? Salvador? A campeã brasileira do desemprego? Bahia? Multicampeã nacional de analfabetismo? É para lá que vais?

Vim, lutei, fiquei. Nunca me faltou luta, nem emprego, tampouco estudo. De caixa num estacionamento park da Calçada, um dos bairros mais populares de Salvador, cheguei a universidade. Como nasci mesmo para mudar e fazer a minha própria história, adentrei no universo universitário de modo diferente, sem pagar vestibular, “pouca renda que sou mesmo”, por intermédio de uma bolsa de estudos do Governo Federal – este mesmo que a classe média critica porque secou as tetas dela [mamar em leite de caixinha não é a mesma coisa...]

E então as portas se abriram para o meu futuro profissional e intelectual. Fiz amigos também! Grandes amigos. Marcos Paulo, Alex Jordan, Lívia Machado, Renato Santarém, Carlos Eduardo, André Luís, Carine Teixeira, Tércio Costa, Silvana Moura, Val e outros tantos que irão perdoar a minha injustiça (Oxalá, Senhor do Bonfim!).

E, nesse lugar tão paradoxal, onde a desigualdade social é tão maior quanto a de minha pacata Alvorada, me vi útil mais uma vez, fazendo o que melhor sei e o que para melhor sirvo: escrever na tentativa incessante de mexer com o brio das pessoas, como Glauber tão genialmente fez com a sua “Estética da Fome”. Onde a miséria é mais presente, o talento dos homens faz-se mais necessário.


E me vi inebriado por essa Bahia – este imenso quadril colorido que samba ou esta sociedade, que, em verdade, não é uma sociedade comum, como diria Jabor: “é um grande ritual em movimento”. E senti uma paixão aguda pelas águas da Baía de Todos os Santos, pela solidão da Ilha dos Frades e o jeito profano de ser da Ribeira – parecido com o meu!

Sim, esta terra é a síntese do que há por dentro de todos os seres humanos, sem distinção: somos sagrados, somos profanos, como a festa do Nosso Senhor do Bonfim. É por essa razão que todas as etnias são bem acolhidas aqui!

E caí de boca em mil e tantos acarajés, em um vatapá mágico que até hoje não descobri se é salgado ou doce. Subi e desci as ladeiras do Pelourinho em silêncio, orando pelos escravos que construíram esta cidade à base de óleo de baleia e argila, com o auxílio deste barroco português que dá a este lugar uma paisagem única, rica, bonita.

E chorei muito pelos meninos famintos da Invasão da Polêmica, que entendem o fechar dos vidros dos carros quando se aproximam, nos semáforos, como um não mudo, sem ainda imaginar que se transformarão nos homens que assaltarão esses mesmos motoristas da Pituba no futuro.

E senti o cheiro do dendê, da urina e do sexo nos dias de carnaval. Senti essa tal “Baianidade Nagô” no samba de roda do Recôncavo, na Santo Amaro de Caetano, Betânia e Canô. E me perdi no requebrar das baianas de cor de canela, que, pasmem: mexem até mesmo quando estão paradas, fitando a rua na janela.

E eu vi o sol queimar a terra no sertão de Juazeiro, um pouco antes de comer um Dourado gigante que fora banhado pelo Velho Chico. Senti saudades do Galícia que não vivi e comemorei as pequenas vitórias como se fossem títulos, criando em mim uma antipatia inexplicável por Vitória e Bahia, a exemplo da que já alimentava pelo Grêmio. E meditei sozinho no Parque Santiago vazio, vestindo a camisa azulina que me dá superpoderes, vendo um futuro que só eu vejo, e que deixará de existir nos meus sonhos.

E me irritei um milhão de vezes enquanto não consegui compreender essa cultura do tempo exclusiva dos baianos. Essa coisa do capitalismo tardio, do “eu não preciso de muito dinheiro/graças a Deus, de Wally Salomão. Até entender, e admirar, e viver melhor assim, mais intensamente, despretensiosamente com pretensões...

E vesti a cor branca em todas as sextas-feiras, com a minha conta de Oxalá que ganhei em uma sessão de Umbanda na casa de mãe Neuza, no Rio Grande do Sul. E pedi a proteção espiritual para vencer as adversidades que tive e que ainda terei, ouvindo Elomar, Caetano e todos os outros gênios que esta terra de artistas memoráveis produziu, tal qual um tear que não para.

Ô Bahia... Terra Mater de todos os filhos. Terra de alguns que te procuram para fazer-te melhor e terra para poucos, quando estes poucos são incapazes de perceber as tuas potencialidades mil, o teu cheiro instigante de areia molhada, tuas curvas sinuosas e tua herança africana pulsante.
15 de janeiro de 2004. 15 de janeiro de 2009. Cinco anos de Salvador. Cinco anos de Bahia. Amém Senhor do Bonfim! Êpa Babá, meu pai Oxalá!
Muito obrigado, Bahia!


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